"This town's so strange
They built it to change
And while we're sleeping
all the streets get rearranged"
Arcade Fire em "Suburban War"
O sol de meio-dia estourava no céu. E parada em um dos pontos de
ônibus da Avenida Rio Branco, ela ainda insistia no hábito de olhar ao redor e
simplesmente tentar catalogar o mundo. Era uma espécie de passatempo, uma
reflexão constante em suas operações mentais, acostumadas a tentar encaixar
eventos, sentimentos e indivíduos em sistemas lógicos. Entretanto, na maioria
das vezes, isso ocorria sem nenhum resquício de sucesso, pois uma das primeiras
lições que marcam a vida adulta é justamente o fato de que o mundo não se deixa
organizar.
A vida é fundamentalmente descontínua, ela já tinha aprendido. As
relações também não têm garantias e isso ela soube relativamente cedo. Alguns
amigos sumiram ou se mudaram, pessoas se cansaram dela ou o contrário. Com a
morte ela teve pouco contato, e preferia não pensar mais demoradamente no
assunto. Lembrou-se que, quando mais jovem, pensou poder achar certeza no que
então não parecia ser instável ou transitório, nem depender de desejos e
vontades. E, vivendo há mais de trinta anos no mesmo lugar, julgou poder contar
com a constância do espaço.
Mas tudo aconteceu de forma diferente. Ela não imaginava que até
mesmo a cidade mudaria fisicamente, afetada pelas variações do mercado
imobiliário, pela falta de sentido das campanhas políticas, pelo inchaço
populacional que pareceu ter acontecido enquanto ela dormia. As mudanças vieram
na forma de demolições inesperadas e enormes instalações de concreto. Quando
menos se esperava, as formas justas de novos edifícios contaminavam um
quarteirão e depois outro, tornando os mapas bem maiores do que a memória.
Já não era mais possível lembrar quais caminhos os ônibus que
ligavam o Centro aos bairros do leste da cidade seguiam quando ainda não havia
o viaduto. O prédio de vidros escuros e seus vinte e oito andares, que passaram
a projetar uma sombra imensa sobre a Catedral, pareciam sempre ter estado ali.
A Avenida Independência mudou de nome e seu trânsito, cada vez mais inerte,
passou a causar incômodos e atrasos dignos de uma metrópole. Nem mesmo as ruas
continuaram retas e algumas esquinas se dobraram tão repentinamente quanto seus
pensamentos.
Quantas repetições são necessárias até que algo se torne um
hábito? Quantas vezes uma rua precisa ser percorrida para que seja de fato um
caminho? Ela poderia continuar horas tentando entender os pormenores de cada processo
misterioso da vida, mas o ônibus encostou no ponto e, enquanto conferia as
moedas da passagem, ela pensou que, na maior parte do tempo, o melhor é mesmo
não pensar. Andou até o fim do veículo e sentou-se na janela, observando o
nada, rumo ao nunca se sabe.
*
Notas:
1) Texto originalmente publicado na Tribuna de Minas
em 17/06/2012, integrando a série "Contos urbanos".
2) Epígrafe sugerida pelo querido Danilo Lovisi, que também é fã de Arcade Fire e lembrou da música assim que leu o texto.
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