Querida Anelise,
João Cabral de Melo Neto, quando se cansava do trabalho,
telefonava para Carlos Drummond de Andrade pedindo conselho. João está morto.
Carlos está morto. Como viver em um mundo onde os dois estão mortos? Não sei.
Mas sei que nós estamos vivas. Não te peço conselhos porque não acredito em
conselhos, mas acredito em você, em mim, em todos nós. E por isso escrevo
essa carta: porque não quero deixar de acreditar.
Mas não tem sido fácil. De repente, parece que tudo acordou ao
contrário. Esses dias eu entendi porque chamam o golpe de golpe. 31 anos
acreditando que era uma metáfora, as manhãs frias nas carteiras do João XXIII
ouvindo professores falarem sobre 1964, as torturas, o Ato Institucional nº5 e
outras barbaridades, para um dia, anos depois, décadas depois, sentir a
batida, a pancada, o murro, o soco. A sensação é literal e não tem figura de
linguagem que explique o assombro dessa descoberta.
Sim, descobrimos. Apanhamos. Entendemos. E agora, levantamos.
Vamos sobreviver. Vamos desestabilizar todos os caminhos. Inverter a lógica,
viver de poesia, acordar, fracassar, apagar, desacreditar e acreditar mais uma
vez. E não, nós não vamos morrer na volta.
Com amor,
Laura
Um comentário:
Querida Laura,
A Ane foi pro mato com a Clarice, faz um mês já, e acho que tão tomando daime. Uma coisa eu te digo, tá rolando golpe, soco, pancada, batida, murro, todo dia, ali perto das quebradas do mundaréu. Eu entendo, politicamente é uma perda. É insubstituível não ter o Carlos nem o João num momento desses. Mas olha, sinceramente, será que a burocracia, diplomacia, melancia, mudariam esses mapas mentais escorpião com touro? Literal é a ressaca e o mergulho. Eu também tenho pavor, tremelico, ui, só de falar em assassinato. Mas o sangue, meu bem, é o melhor remédio pra calçada suja de merda seca catedrática. Eles estão narrando o jogo, ao vivo, e o comentarista é o mesmo de 50 anos atrás. Não precisa bater quando vier, mas venha.
Beijo,
Lica
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