Páginas

28 de outubro de 2016

Duas traduções de Warsan Shire



Warsan Shire nasceu no Quênia em 1988, mas cresceu em Londres. Estudou escrita criativa na London Metropolitan University. É autora de Teaching My Mother How To Give Birth (flipped eye, 2011) e Her Blue Body (flipped eye, 2015). Teve alguns de seus versos usados por Beyoncé no álbum visual Lemonade (2016). Abaixo dois poemas seus descompromissadamente traduzidos para o português.


o insuportável peso de ficar

eu não sei quando o amor se tornou impreciso
o que eu sei é que ninguém que eu conheço tem isso
os braços do meu pai em volta da minha mãe
ou aquela fruta madura demais, uma porta meio aberta
quando seu nome é uma mão que nunca consigo segurar
tudo em que já acreditei se torna mágico

amantes para mim são árvores crescendo para e 
a partir um do outro, procurando a mesma luz
a risada da minha mãe em um quarto escuro
a fotografia envelhecendo em minhas mãos
essa é a única coisa que eu sei fazer, levar minhas perdas comigo por aí
até que começo a me parecer com todas as memórias ruins,
todos os medos terríveis ,
todos os pesadelos já sonhados.

eu pergunto se você já me amou
você diz ‘amei’, amei’, tão rápido
que parece outra pessoa falando
você é feito de aço? você é feito de ferro?
quando você chora no telefone, algo aqui dentro dói

mas eu deixo você ir, porque eu preciso de alguém 
que saiba 
ficar


the unbearable weight of staying

i don’t know when love became elusive
what i know, is that no one i know has it
my fathers arms around my mothers neck
fruit too ripe to eat, a door half way open
when your name is a just a hand i can never hold
everything i have ever believed in, becomes magic.

i think of lovers as trees, growing to and
from one another searching for the same light,
my mothers laughter in a dark room,
a photograph greying under my touch,
this is all i know how to do, carry loss around until
i begin to resemble every bad memory,
every terrible fear,
every nightmare anyone has ever had.

i ask did you ever love me?
you say of course, of course so quickly
that you sound like someone else
i ask are you made of steel? are you made of iron?
you cry on the phone, my stomach hurts
i let you leave, i need someone who knows how to stay. 


*

para mulheres difíceis de amar

você é um cavalo correndo sozinho
e ele tenta domar você
te compara a uma estrada impossível
a uma casa em chamas
diz que você o está cegando
que ele nunca conseguiria te deixar
te esquecer
querer nada além de você
você deixa ele tonto, você é insuportável
cada mulher antes ou depois de você
está encharcada no seu nome
você enche a boca dele
a memória do seu gosto faz o dente dele doer
o corpo dele é uma longa sombra procurando o seu 
mas você é sempre tão intensa
com esse jeito assustador, descarado
e sofrido de querê-lo 
ele te fala que homem nenhum pode competir com o cara 
que você tem na sua cabeça
e aí você tentou mudar, não tentou?
ficar com a boca mais fechada
tentou ser mais suave
mais bonita
menos instável, menos esperta
mas mesmo dormindo você conseguia sentir 
ele se desprendendo de você nos sonhos 
então o que você queria fazer, meu bem
abrir a cabeça dele?
você não pode construir casas de seres humanos
alguém já deveria ter te contado isso
e se ele quer ir embora
então deixa ele ir embora
você é assustadora
estranha e bela
uma mulher que nem todo mundo sabe amar


for women who are difficult to love

you are a horse running alone
and he tries to tame you
compares you to an impossible highway
to a burning house
says you are blinding him
that he could never leave you
forget you
want anything but you
you dizzy him, you are unbearable
every woman before or after you
is doused in your name
you fill his mouth
his teeth ache with memory of taste
his body just a long shadow seeking yours
but you are always too intense
frightening in the way you want him
unashamed and sacrificial
he tells you that no man can live up to the one who
lives in your head
and you tried to change didn't you?
closed your mouth more
tried to be softer
prettier
less volatile, less awake
but even when sleeping you could feel
him travelling away from you in his dreams
so what did you want to do, love
split his head open?
you can't make homes out of human beings
someone should have already told you that
and if he wants to leave
then let him leave
you are terrifying
and strange and beautiful
something not everyone knows how to love.

*

Traduções: Laura Assis

22 de maio de 2016

Cartas para o Eco II



Juiz de Fora, 19 de maio de 2016.

Querida Anelise,

João Cabral de Melo Neto, quando se cansava do trabalho, telefonava para Carlos Drummond de Andrade pedindo conselho. João está morto. Carlos está morto. Como viver em um mundo onde os dois estão mortos? Não sei. Mas sei que nós estamos vivas. Não te peço conselhos porque não acredito em conselhos, mas acredito em você, em mim, em todos nós.  E por isso escrevo essa carta: porque não quero deixar de acreditar.

Mas não tem sido fácil. De repente, parece que tudo acordou ao contrário.  Esses dias eu entendi porque chamam o golpe de golpe. 31 anos acreditando que era uma metáfora, as manhãs frias nas carteiras do João XXIII ouvindo professores falarem sobre 1964, as torturas, o Ato Institucional nº5 e outras barbaridades, para um dia, anos depois, décadas depois, sentir a batida, a pancada, o murro, o soco. A sensação é literal e não tem figura de linguagem que explique o assombro dessa descoberta.  

Sim, descobrimos. Apanhamos. Entendemos. E agora, levantamos. Vamos sobreviver. Vamos desestabilizar todos os caminhos. Inverter a lógica, viver de poesia, acordar, fracassar, apagar, desacreditar e acreditar mais uma vez. E não, nós não vamos morrer na volta.

Com amor,
Laura

21 de maio de 2016

Cartas para o Eco I



Juiz de Fora, 19 de maio de 2016.

Caro Otávio,

Não sei quanto aos peixes, aos poemas, aos livros, mas nós estamos cada vez mais sumidos das fotografias. A verdade é que o mundo não está para fotografias, porque elas não conseguiriam revelar o mais difícil que, neste momento, não é a luz; é a sombra, e que triste que seja assim.

De acordo com um dicionário etimológico que encontrei outro dia na estante, a origem da palavra “resistência” está no latim “sistere”, que significa “parar, permanecer, ficar de pé, estar presente”.  O prefixo “re” aponta para uma insistência nessa ação, como um chamamento a realizá-la outra vez.  Não sei nada de etimologia e minhas últimas aulas de Latim datam de mais de 10 anos atrás, mas entendi, ou quis entender, que “resistir”, portanto, talvez não seja nada mais do que insistir em estar.

E estamos. Então, resistimos. Pelo não, pela recusa, pela própria resistência. Mas nos perguntamos até que ponto isso é suficiente. Não estamos em um festival de cinema internacional; não temos cartazes em inglês ou francês para mostrar para a imprensa, mas daqui deste palco, deste bar, na Rua Espírito Santo quase esquina com a Avenida Rio Branco, na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil, América Latina, mundo: daqui resistimos enquanto procuramos uma maneira de resistir. E por um único motivo: precisamos.

Talvez eu tenha escrito essa carta para falar dos seus poemas e dos peixes. Talvez isso seja uma resposta àquela sua mensagem sobre o golpe. Talvez eu apenas precisasse escrever alguma coisa. Ou talvez seja só um modo de reaprender a respirar.

Com amor,
Laura


31 de março de 2016

Outro sonho

Durante grande parte da minha infância, tive um determinado sonho de forma muito recorrente. Nele, eu estava sempre em um mesmo local, que meu vocabulário limitado reconhecia apenas como um "pátio", esperando uma "pessoa muito importante". O pátio era cercado por quatro prédios de dois andares, que pareciam igrejas. De cada uma das quatro extremidades onde os prédios se encontravam, saía um caminho, que cortava a grama e dava em um chafariz que ficava bem no centro.  No sonho, acontecia sempre a mesma situação: eu adentrando o tal pátio e observando a construção, a grama e o chafariz enquanto esperava e sentia a presença da tal "pessoa importante", a quem eu também me referia às vezes como "pessoa superior". Eu lembro da ansiedade que o encontro iminente com essa pessoa me causava, mas ela nunca aparecia, o sonho sempre acabava antes dela chegar.

Lembro de inúmeras vezes acordar e pensar: "sonhei de novo que esperava a pessoa importante no pátio da igreja". Os detalhes e a dinâmica sempre se repetiam exatamente da mesma maneira e aquilo virou uma coisa bastante normal para mim. Parei de ter esse sonho por volta dos 12 anos, mas de vez em quando ainda me lembrava dele, devido à recorrência e, principalmente, ao fato de que ele era nítido, lúcido, diferente de qualquer outro sonho que eu já havia tido. Me intrigava também não lembrar de já ter estado ou sequer visto nenhum lugar parecido com aquele.

Algum tempo se passou e quando eu tinha por volta de 26 anos estive em Lisboa pela primeira vez. Conheci lugares lindos, turísticos e não turísticos, detalhes da cidade, enfim. E um desses locais foi o Mosteiro dos Jerônimos. Lembro de pouca coisa antes de entrar no prédio além do calor e de um sol devastador. Era julho e a fila de turistas estava imensa. Provavelmente entrei no local sem prestar muita atenção, querendo, de imediato, apenas uma sombra depois de uns 30 minutos na fila debaixo de sol. Mas o fato é que quando pisei dentro mosteiro, entendi imediatamente que aquele era o lugar que durante tanto tempo apareceu meus sonhos e esse reconhecimento aconteceu de uma forma quase física, foi como levar um soco, tamanha a violência da surpresa. O tal pátio de igreja cercado por quatro prédios nos meus sonhos antigos era exatamente aquele claustro, ou seja, o pátio interior do mosteiro, cuja arquitetura eu associava a uma igreja. As janelas, corredores, os caminhos, a grama, o chafariz... tudo exatamente no mesmo lugar. Havia anos que eu não tinha mais aquele sonho, entretanto, bastaram alguns segundos para eu compreender que estava dentro dele. 

Fiquei pensando em como eu poderia já ter visto aquilo antes. Livros? Filmes? Escola? Mas comecei a ter o sonho antes dos 8 anos, quando era bem pouco provável que eu tivesse tido acesso àquela imagem ou algo relacionado a ela. E mesmo que em algum momento da minha infância eu tivesse visto uma fotografia do local, como a memória teria sido tão vívida por tanto tempo? Em tantos detalhes? E por que aquele sonho tinha se repetido tanto, da mesmíssima maneira e por tantos anos? Estava tudo exatamente como sempre foi no sonho, só faltava a tal "pessoa importante", "superior", cuja presença era sempre tão forte e, ao mesmo tempo, ausente, uma vez que nos meus sonhos eu esperava por ela, mas ela nunca aparecia. Pensei nisso e só demorei alguns segundos para lembrar que o claustro do Mosteiro dos Jerônimos é o local exato onde estão os restos mortais de Fernando Pessoa.





31 de maio de 2015

Cresceu comigo

"This town's so strange
They built it to change
And while we're sleeping 
all the streets get rearranged"

Arcade Fire em "Suburban War"



O sol de meio-dia estourava no céu. E parada em um dos pontos de ônibus da Avenida Rio Branco, ela ainda insistia no hábito de olhar ao redor e simplesmente tentar catalogar o mundo. Era uma espécie de passatempo, uma reflexão constante em suas operações mentais, acostumadas a tentar encaixar eventos, sentimentos e indivíduos em sistemas lógicos. Entretanto, na maioria das vezes, isso ocorria sem nenhum resquício de sucesso, pois uma das primeiras lições que marcam a vida adulta é justamente o fato de que o mundo não se deixa organizar. 

A vida é fundamentalmente descontínua, ela já tinha aprendido. As relações também não têm garantias e isso ela soube relativamente cedo. Alguns amigos sumiram ou se mudaram, pessoas se cansaram dela ou o contrário. Com a morte ela teve pouco contato, e preferia não pensar mais demoradamente no assunto. Lembrou-se que, quando mais jovem, pensou poder achar certeza no que então não parecia ser instável ou transitório, nem depender de desejos e vontades. E, vivendo há mais de trinta anos no mesmo lugar, julgou poder contar com a constância do espaço. 

Mas tudo aconteceu de forma diferente. Ela não imaginava que até mesmo a cidade mudaria fisicamente, afetada pelas variações do mercado imobiliário, pela falta de sentido das campanhas políticas, pelo inchaço populacional que pareceu ter acontecido enquanto ela dormia. As mudanças vieram na forma de demolições inesperadas e enormes instalações de concreto. Quando menos se esperava, as formas justas de novos edifícios contaminavam um quarteirão e depois outro, tornando os mapas bem maiores do que a memória. 

Já não era mais possível lembrar quais caminhos os ônibus que ligavam o Centro aos bairros do leste da cidade seguiam quando ainda não havia o viaduto. O prédio de vidros escuros e seus vinte e oito andares, que passaram a projetar uma sombra imensa sobre a Catedral, pareciam sempre ter estado ali. A Avenida Independência mudou de nome e seu trânsito, cada vez mais inerte, passou a causar incômodos e atrasos dignos de uma metrópole. Nem mesmo as ruas continuaram retas e algumas esquinas se dobraram tão repentinamente quanto seus pensamentos. 

Quantas repetições são necessárias até que algo se torne um hábito? Quantas vezes uma rua precisa ser percorrida para que seja de fato um caminho? Ela poderia continuar horas tentando entender os pormenores de cada processo misterioso da vida, mas o ônibus encostou no ponto e, enquanto conferia as moedas da passagem, ela pensou que, na maior parte do tempo, o melhor é mesmo não pensar. Andou até o fim do veículo e sentou-se na janela, observando o nada, rumo ao nunca se sabe.

*
Notas:

1) Texto originalmente publicado na Tribuna de Minas em 17/06/2012, integrando a série "Contos urbanos".
2) Epígrafe sugerida pelo querido Danilo Lovisi, que também é fã de Arcade Fire e lembrou da música assim que leu o texto.